"O que tem de ser tem muita força"... deôntica. Contributos para a caracterização do verbo modal "ter de"
Resumo
Neste texto, procuramos trazer alguns contributos para a caracterização linguística do verbo ter de/ter que, assinalando particularidades que o individualizam no quadro dos semiauxiliares modais do português. Reunimos informações oriundas da morfologia, da sintaxe, da semântica e da linguística textual e discursiva, observadas, igualmente, em exemplos recolhidos no corpus CETEMPúblico. O semiauxiliar ter de, tal como dever, surge no domínio da necessidade. Embora a leitura deôntica prevaleça em vários contextos, é possível encontrar enunciados de natureza epistémica, externa ao participante e, até, interna ao participante, seguindo a classificação tipológica proposta por van der Auwera e Plungian (1998). A sua força modal resulta de uma restrição máxima de mundos possíveis (Kratzer 1981; 2012), situando-se no polo positivo (certo/obrigatório) da escala dos verbos modais, que, em português, contempla dois outros verbos, poder e dever (Oliveira 1988). Contudo, a leitura de obrigação forte prototípica associada a ter de está presente apenas em situações controláveis pelo sujeito e, mesmo nesses casos, o princípio da cortesia e o efeito de atenuação podem converter enunciados com este semiauxiliar em sugestões ou recomendações, particularmente em atos injuntivos de natureza não impositiva e em certos atos expressivos. Do ponto de vista sintático, e seguindo uma proposta esboçada por Óscar Lopes (2005), procurámos avaliar os efeitos da combinação de ter de com diferentes tipos sintáticos de verbos, designadamente verbos inacusativos e verbos inergativos. Além de aspetos atrás enunciados, tornou-se necessário considerar critérios como a classe aspetual do verbo, a natureza (impositiva ou não) dos atos discursivos e a intencionalidade e o estatuto dos interlocutores. Por norma, e tendo em consideração a análise de enunciados presentes no CETEMPúblico, os verbos inacusativos combinam com classes aspetuais que preveem uma culminação e, perante o semiauxiliar modal ter de, ativam leituras que focam necessidades determinadas por circunstâncias externas ou internas ao participante. Relativamente aos verbos inergativos, verificamos que os atélicos estão presentes em predicados que configuram processos e ativam a leitura de modalidade externa ao participante, enquanto os potencialmente télicos se articulam com processos culmináveis e podem assumir uma leitura modal igualmente externa ao participante. A observação cuidada de outros exemplos poderá, contudo, abrir caminho a novas leituras modais.
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